Blog

Por cima do muro

Quem me conhece, mesmo que seja apenas por este espaço virtual, sabe que moro em um bairro periférico e em uma casa velha que vem passando sistematicamente por reformas. Sabe, também, que este lugar é extremamente especial para mim.

Neste pequeno texto, apenas quero registrar os bons momentos de um convívio harmônico que venho desfrutando aqui em casa há mais de 10 anos, tempo que tenho na administração direta do imóvel que vim a adquirir por força do destino.

Não vou ficar em cima do muro! Vou tomar partido e dizer que tenho vizinhas simpáticas, cordiais e típicas “mãezonas”, as quais me conhecem desde bem antes de eu vir morar aqui. Elas eram amigas de minha mãe e, também, de meu tio, antigos moradores desta casa-lar. Com isso, destaca-se do trato delas comigo, a boa convivência que com os antigos moradores elas tiveram. E de quem é a vantagem? Minha, claro!

Nos fundos do quintal, meu tio mantinha uma comunicação de trocas de itens entre ele e a vizinha do lado de baixo, passando as coisas de interesse recíproco por cima do muro, descendo ou subindo as guloseimas por uma sacola plástica puxada por um fio qualquer, até mesmo um barbante. Óbvio que eu mantive essa tradição: pelo mesmo ponto, eu desço mexericas para a vizinha e, principalmente, para a bisneta dela, que ama a fruta em questão. Pela sacola que desço, recebo – depois de içá-la –, cana bem macia e doce de fazer inveja às abelhas.

Às vezes, por cima do muro, apenas a cabeça e os braços da vizinha do lado de cima, para me perguntar se eu quero uma sopinha. Resposta sempre positiva, ela costuma me entregar por ali mesmo, desde que a comida esteja acondicionada em uma vasilha com tampa hermética. Noutras ocasiões, quando a sopa ou mesmo uma feijoada ainda está quente e numa panela cuja tampa pode se desprender facilmente, ela só me avisa por cima do muro para que eu vá buscar no portão, o que prontamente atendo.

Por cima do muro, passa a maritaca dessa mesma vizinha para comer a goiaba amarela que plantou um dia o meu tio, ou para vir ao quintal atiçar os meus gatos. Algumas vezes, a ave fica em cima do muro – literalmente – apenas andando pra lá e pra cá, dando uns gritinhos de alegria ao me ver e me escutar, já que eu “converso” com ela. Por cima do muro passa daqui para lá o fio de nylon ou de silicone que vai permitir a finalização de um colar do artesanato da irmã dessa mesma vizinha. Tempos depois, volta o saquinho com os rolinhos, com a boa notícia de que a peça foi finalizada e ficou linda! O acompanhamento a título de agradecer pelo meu empréstimo? Um antepasto de berinjela ou um queijo recém-comprado na região metropolitana, para minha alegria!

Enquanto em certos lugares algumas coisas acontecem às ocultas, ou seja, por baixo dos panos, aqui em casa, por cima do muro vai e também vem poeira de nossas reformas de forma bastante visível, seja de que lado de minha casa for. Além da poeira, vão as nossas risadas, as nossas guloseimas, as nossas alegrias e, infelizmente, também algumas tristezas, como no dia em que a vizinha de baixo recebeu – logo de manhã – a notícia do falecimento do marido dela, em plena pandemia, e apenas 26 dias depois de o filho haver partido igualmente vítima do vírus. O choro cala fundo no peito tanto de quem chora a perda como no de quem toma ciência dela de maneira indireta.

O cachorrão dos vizinhos do lado de cima, de tão grande, alcança com as patas dianteiras o ponto em que está o chapéu de muro, fazendo com que os gatos de rua que por ali se arrisquem a transitar, deem carreiras que levantam folhas e pelos num piscar de olhos.

É também nesse ponto privilegiado do terreno e divisor de casas, de famílias, de vidas e de intimidades, que as encomendas de uns, recebidas por outros, transitam se são pequenas e de fácil manuseio. Caso contrário, apenas desponte uma cabeça e eu ouça uma voz a dizer o meu nome, estando no quintal, já tenho o prenúncio de que deverei ir ao portão para receber ou levar uma caixa que veio de fora ou, então, com a coleta de ora-pro-nobis que é garantia do retorno de uma boa comida preparada com ele e que vai me liberar do fogão por mais de uma refeição. Mas se eu fui para o fogão e preparei algo bem gostoso, como uma canjica, que rendeu o suficiente para umas dez ou mais pessoas se fartarem, a vasilha bem tampada e com o doce quentinho também chega ao portão vizinho, depois de minha voz transpor por cima do muro o chamado para que alguém vá receber a minha retribuição, forma de agradecimento por várias acolhidas.

Por ser um muro e não uma muralha, mesmo sendo um bloqueio, distintamente do que tivemos certa época no espaço urbano, que eram as cercas – normalmente de arame farpado –, as quais nos permitiam uma participação com mais intimidade na vida da vizinhança, ainda assim, esse espaço atual de separação é, simultaneamente, favorecedor da ampliação da harmonia entre os lares e seus respectivos habitantes; é o ponto em comum que mantenho com as gerações passadas e as atuais; é ele que me permite minimizar a solidão que a ausência dos meus entes queridos me causa. Ainda vejo sobre esse muro a convivência fraterna, amiga, do “parente” mais próximo, cujas cercas antigas eram palco. No chapéu de muro atual, encontro a minha família estendida, em que a frase popular que diz que “o vizinho é o parente mais próximo” se concretiza e me faz sentir uma segurança que não tinha na Serra, mesmo quando lá morava com o meu marido. Dá a mim a certeza de pertencimento, fortalece a minha identidade como filha e sobrinha dos antigos moradores; enfim, faz com que eu me sinta ainda mais feliz.

MoBa NePe Zinid – 15 jun. 2024.