A história do arroz trifásico
Aconteceu no ano de 2006. Meu falecido marido era o chefe da seção onde trabalhávamos. Era a primeira vez que um estágio de meus futuros colegas de trabalho era admitido fora dos âmbitos da capital. Estávamos na região metropolitana de Belo Horizonte e, por conseguinte, realizávamos um trabalho nos moldes das regionais mineiras. Sendo assim, o mais apropriado para o grupo que em breve estaria se formando.
Eu estava muito feliz por haver conseguido convencer com o meu pedido formal, via ofício, que a nossa seção tinha plenas condições de receber aos aspirantes e meus alunos que, em breve, realizariam formalmente o mesmo trabalho que eu e meu chefe fazíamos em Santa Luzia e região.
O ineditismo ou a novidade – que me parece até hoje única –, era comemorado(a) por nós dois. Tínhamos sido reconhecidos como aptos a recepcionar nossos futuros companheiros de trabalho e, para tanto, estivemos envolvidos nos preparos da seção para que não lhes faltassem serviços típicos de uma regional. Deixamos um pouco de cada natureza do trabalho afim e, após pensarmos muito no que seria feito dentro da seção enquanto não houvesse nenhum chamado para um atendimento externo, voltamos a nossa atenção para a alimentação de um pequeno grupo de aspirantes formado por 11 pessoas e mais os responsáveis de fato pelo plantão a cada 12 horas naquele fim de semana memorável.
Nós dois, o chefe e eu, nos desdobraríamos por 24 horas (para além do plantonista escalado), mas os grupos de estagiários seriam renovados. A logística da alimentação e todas as despesas inerentes ao grupo recepcionado por nós, bancamos felizes como nos era peculiar. Já pagávamos folhas, tintas e, às vezes, outras pequenas despesas necessárias para o bom andamento do trabalho que desenvolvíamos. Não nos constrangíamos em auxiliar a um sistema público precário, necessitado – realmente – de nossa ajuda. Simplesmente, realizávamos isso toda vez que havia precisão.
A logística da alimentação desse pequeno grupo – um batalhão para mim, acostumada a cozinhar apenas para duas pessoas – foi montada com rapidez e praticidade pelo chefe da seção, acostumado com o interior e muita recepção de grandes grupos na roça. Ele definiu que levaríamos o forno micro-ondas para a cozinha do nosso local de trabalho, para nele prepararmos a lasanha semipronta que já tínhamos o hábito de comprar para consumo próprio e que sabíamos bastante saborosa. O arroz, eu prepararia e levaríamos pronto. O acompanhamento seria batata palha de pacote, também fácil de manusear. Alguns litros de refrigerante e pronto! Ninguém ficaria com fome no estágio.
Assim combinamos, assim o fizemos. Compramos tudo que era necessário comprar, num grande atacadista onde ele fazia o suprimento para a nossa casa e também para a da mãe dele. Felizes, esperamos o primeiro sábado de estágio – histórico! – em nosso local de trabalho, fora do circuito constante onde era invariavelmente realizado: na capital, independentemente de aqueles futuros profissionais começarem suas atividades no interior e, por conseguinte, nos moldes que estão mais próximos àquilo que nós tínhamos a lhes oferecer. Conseguimos, de forma inédita, portanto, quebrar esse ciclo naquele ano!
O plantão, àquela época, começava às 7h e, com a responsabilidade de fazer uma panela de arroz gigantesca, eu me levantei de madrugada, medi o que seria o correspondente para duas pessoas, porque era o que eu estava acostumada a fazer, fui multiplicando essa medida até chegar a 7 vezes ela, ou seja, o suficiente para 14 pessoas sem sobra. Multipliquei também o tempero e a água que eu pus para ferver acondicionada em 3 canecas grandes para dar conta de tudo.
Como eu fazia com o arroz cotidiano, fiz também com aquele para atender ao batalhão (do apetite) naquele sábado: coloquei o óleo, deixei esquentar, refoguei o alho recém-socado com um pouco de sal, joguei o arroz já lavado e escorrido; torrei e, quando aquelas várias canecas ferveram a água, fui despejando na panela gigante que ocupava a boca central do fogão. Tampei a panela e fui tomar o meu banho e me preparar para levarmos – meu marido e eu – as coisas para o carro. O dia já havia começado quente!
Desci correndo depois do banho e, na cozinha, imaginei que já era a hora de colocar a segunda água naquela panela gigante da qual eu não conseguia prever nada como nas panelas regulares que eu usava. Coloquei mais bastante água e fomos os dois abastecer o carro com tudo que era necessário levarmos para o plantão naquele dia.
De volta à cozinha, imaginei que já era a hora de colocar a terceira água na panela gigante e assim o fiz. Pouco depois disso, meu marido me pediu que arranjasse uma tábua de carne bem grande, porque a panela teria que ser colocada sobre ela devido ao calor que nela ainda haveria durante o transporte. Panela colocada no carro, fomos para a seção. Chegando lá, deixamos todos os itens, da refeição do grupo, na cozinha, e já era hora de nossos primeiros aspirantes e estagiários chegarem e, por isso, fomos lhes dar as boas-vindas: eram 7 horas de um lindo e ensolarado sábado!
O dia foi bastante ocupado até dar o horário de almoço, que não pôde ser pontualmente às 12h como pensávamos, pois o trabalho que realizávamos é, de fato, imprevisível. Tivemos muitas tarefas internas, como devidamente planejado, mas também tivemos deslocamentos para atendimentos externos e, ao retornarmos, por volta de umas 15h, era o melhor horário para irmos todos para a cozinha, colocarmos as lasanhas no forno micro-ondas e esquentarmos um pouco o arroz, separarmos os pratos e os talheres descartáveis, colocarmos os pacotes de batata palha à disposição sobre a mesa de refeições, com os copos e informarmos que os refrigerantes estavam na geladeira para quem quisesse se servir. E tínhamos que ser rápidos, pois a qualquer momento poderia acontecer um novo chamado para um atendimento externo!
A panela de arroz foi para o centro da mesa e, com uma colher bem grande, os meus alunos e futuros companheiros de trabalho começaram a se servir até que todos já tinham retirado o quanto lhes interessava e chegou a vez de meu chefe (e marido) também se servir e, ao chegar junto à panela do arroz, como muitos já haviam mexido ali, dava para ver o fundo da panela e que uma parte do arroz tinha dado uma queimadinha (enquanto eu tomava banho); ao mesmo tempo, na parte superior, que ainda se mostrava intacta numa lateral, o arroz parecia não ter ficado bem cozido (pressa pra retirar do fogão e ir para o plantão). Ele, brincalhão como era, não resistiu e foi logo soltando essa: “Pessoal, vocês conhecem arroz trifásico? Queimado no fundo, empapado no meio (excesso de água da segunda vez…) e cru em cima?”. Foi uma gargalhada geral de todos ali reunidos em volta da mesa de refeição que usávamos. A única exceção foi a minha que fiquei muito chateada na hora com aquele desrespeito pelo meu primeiro arroz feito para um montão de gente! Puxa vida! Eu cozinhei sozinha e de madrugada ainda por cima!! Eu nunca havia feito comida para tanta gente assim e de uma só vez!!
Mas eu só esperei alguns poucos minutos, para fazer a minha desforra. O arroz foi acabando… acabando… até que acabou de vez, porque tem algumas pessoas que gostam da rapa do arroz, outras que gostam dele empapado (bem cozido e ainda meio molhado) e outras que gostam dele menos cozido. Sendo assim, eu acabei atendendo a todos os gostos e, claro, como a panela ficou raspada e não tinha mais arroz nela, eu chamei o chefe da seção e mostrei pra ele e lhe disse: “Viu, só? É de arroz trifásico que todos gostam!”. Ele deu uma gargalhada e esticou aquele “Ééééééééé… ‘cê tem razão!”. Continuou rindo, mais de minha cara de brava com a brincadeira dele na frente dos meus alunos e ali, naquele estágio sob a minha responsabilidade, quando ele dissera que era um arroz trifásico, do que da minha mostra que o arroz podia não ter saído soltinho e nem tão maravilhoso quanto outros que eu já havia feito na minha vida até então, mas que havia sido totalmente consumido e, portanto, eu estava perdoada pelo meu erro!
Esse estágio por mim ofertado aos meus alunos – à época – e futuros colegas, dentro da minha área de atuação, deixou ótimas lembranças e histórias que valem a pena ser contadas. São, também, uma boa forma de trazer aqueles bons momentos de volta! Portanto, que vivam as boas lembranças! Sempre!
MoBa NePe Zinid – 17dez2022
Tenho certeza que todos se lembram muito bem desse arroz. A comida no papinho passa e o que fica é o gesto! Como diria Mia Couto: “cozinhar é um modo de amar os outros”! Um abraço, minha amiga.
Querida amiga Rafaela,
que linda lembrança do Mia Couto você trouxe para todos nós!!
Obrigada pela presença e constância como leitora do blog!
Saudades de você(s) e dos vários modos de amar cozinhando que você tem!!
Beijos!
Pode ter certeza amiga que deve ter, até hoje, alguém em algum lugar que se lembrará de você como a “chefe do fantástico arroz trifásico”.
São lembranças assim que nos aquecem o coração.
Beijos
Querida amiga Zila,
seu otimismo é contagiante!
Fico torcendo daqui para que realmente exista esse alguém!
Obrigada por sua presença em minha vida há mais de 40 anos!!
Beijos!