PRO LIXO OU PRA DOAÇÃO
Em uma época em que nem se falava em reciclagem, pelo menos não usando a palavra, em Belo Horizonte, nos idos dos anos 1960, no Bairro Minas Brasil – ainda com ruas calçadas com pé-de-moleque –, minha mãe costurava colchas de retalhos que vinham da doação da costureira da mesma rua. Ela morava do lado de baixo e se caminhando em direção à pracinha onde se localiza o Grupo Escolar no qual eu estudei as primeiras séries.
Morávamos em um barracão de dois cômodos e de favor – cedido pela minha tia, irmã de minha mãe, e construído pelo marido dela. As necessidades eram inúmeras e minha mãe, que havia aprendido mais ou menos a costura no Colégio Pio XII, na época das vacas gordas da adolescência dela, como havia recebido de minha avó portuguesa a máquina de costura Singer do século XIX, nela realizava a proeza de fazer até mais de uma colcha de retalhos por semana para comprar os itens básicos para a nossa subsistência. A dependência era da doação a ser feita pela vizinha.
Foi assim que eu aprendi, desde tenra idade, com a minha mãe, a importância de se separar o que vai pro lixo – porque realmente não tem utilidade como item a ser reciclado – e o que pode ser doado, mesmo que esteja danificado.
Eu devia ter uns 5 anos à época em que eu ajudava a separar os retalhos. Tirinhas muito fininhas para um lado e os retalhos que podiam compor a linda colcha que surgiria em breve, pro outro. As tirinhas fininhas eram cortadas por minha mãe em pequenos quadradinhos, gerando-lhe calos nos dedos, e serviriam para encher travesseiros, embora o pó que vem dos fiapos me prejudicasse a respiração e, portanto, eu não os usava. O meu travesseiro era de macela que minha mãe – também com a minha ajuda – catava no mato e deixava secar dentro de uma bacia de alumínio. O travesseiro ficava muito cheiroso e eu dormia muito bem sentindo o aroma de mato entrando por minhas narinas. Somente quando fiz minha graduação em Farmácia foi que tive ciência das propriedades da macela e percebi como é importante que se mantenha a sabedoria popular.
Voltando ao tema, o descarte sem volta ou o aproveitável, eu tenho observado em certos pontos de alguns bairros, alguns varais solidários, esticados sobre muros voltados para o passeio público, onde qualquer um pode deixar dependurada uma peça de roupa que possa ainda servir para o uso de alguém necessitado dela. Não é muito antiga a prática, para a minha observação do entorno, nos bairros pelos quais circulo. Devo dizer que me alegra muito ver que há pessoas que se preocupam com o próximo. Embora eu não tenha ainda deixado dependurada nenhuma contribuição, já que tenho uma instituição na qual faço doação de diversas naturezas há mais de 30 anos, considero muito válida a iniciativa e a aplaudo.
Eu me entristeço quando faço as minhas caminhadas e vejo sapatos, tênis, chinelos e pasmem(!) até livros jogados no lixo e em meio a detritos de toda natureza, inclusive fezes de animais. A falta de consciência de quem faz isso é tão grande que me dá vontade de tocar a campainha e falar com a pessoa que eu doo quando é algo aproveitável como o que vi no lixo do passeio da casa dela. Mas tenho aprendido a me conter, porque o ser humano é muito difícil de se lidar com ele. Meu receio de ser maltratada ainda me faz ter o bom senso de não me meter naquilo para o que não fui chamada. Mas até o me calar diante do que vejo praticarem com tamanha insensatez, ao jogarem no lixo o que é passível de uma doação, me incomoda muito. Fico imaginando o desrespeito com as pessoas que vão vasculhar aquele lixo na tentativa de aproveitar o que, de fato, ainda é utilizável.
Atualmente, sei que apenas os panos de chão já bem velhinhos, encardidos e esburacados é que devem verdadeiramente ir para o lixo. Até um vaso daqueles feitos de cimento, que se partiu em dois, porque as raízes da planta forçaram a estrutura até ela ceder, é bem-vindo como doação. Como o meu era um vaso muito grande, coloquei-o no passeio, bem acomodado, para não quebrar mais. Não demorou muito para alguém que me conhece tocar a campainha e perguntar se eu estava mesmo me desfazendo daquele vaso e, ao receber minha confirmação, foi logo se apropriando e me informando que iria recuperá-lo com cimento, pintá-lo (estava na cor natural) e depois mandaria uma foto para eu ver como havia ficado. Eu fiquei muito feliz por ter praticado aquilo que aprendi desde menina: a não pôr no lixo o que pode vir a ser útil para alguém. E, para que saibam, de fato, ficou lindo o vaso recuperado e pintado de vermelho!
Mas voltando ao tema… Agora, que há muitas pessoas com bastante dificuldade em fazer a seleção do que vai pro lixo e do que vai para a doação, sem dúvida, há. Minha mãe não era uma delas, sobretudo quando se tratava de doar algo meu… A minha primeira lembrança de não ser consultada por minha mãe quanto a uma doação de algo que eu estimava, foi quando eu tinha 18 anos. Eu trabalhava desde os 15 anos de idade e, como era um emprego de 8h/dia, saía de casa cedo e voltava à noite. Nos finais de semana, podia ter um pouco mais de folga e, portanto, realizar minha leitura de lazer. Foi num deles que procurei pela revista número 1 da turma da Mônica, com a dedicatória do meu pai na capa e não a encontrei. Fui diretamente até minha mãe, perguntar o que ela havia feito com a revista, já que eu tinha poucas à época e, claro, se não estava ali onde eu guardava, só podia ter sido retirada por ela. Tranquilamente, ela me respondeu que durante a semana haviam passado alguns estudantes no portão lá de casa e perguntaram se ela teria gibis para doar e ela doara os meus. Eu fiquei um bom tempo emburrada com a minha mãe. Afinal, havia pouco tempo que meu pai falecera e a revista tinha a dedicatória dele na capa: “Do papai para a Mônica!”. Nesse dia, chorei de raiva e frustração. Nunca mais veria a revista!
Eu também me lembro – ainda um pouco triste – de ter procurado um dia por um coletinho de crochê, feito em pequeninos quadradinhos, de lã, todo coloridinho e com o fio do arremate para o lado do direito, gerando aí o grande diferencial na peça, feita manualmente por mim. Todos se encantavam com o meu coletinho! Eu o procurava e não o encontrava de jeito nenhum! E a casa não era grande: apenas três cômodos nos quais eu deveria procurar pela peça. Detestava ter que perguntar à minha mãe onde estava algo que era meu, porque sabia que ela daria bronca; não teve outro jeito: tive que perguntar. Mas nesse caso, quem deu a bronca fui eu, porque ela simplesmente me comunicou que havia doado, pois era uma peça “muito infantil” e eu já estava “ficando velha” para usá-la. Detesto ter que dizer isso, mas velha estou agora e, se o coletinho ainda estivesse comigo, como engordei bastante nos últimos anos, eu já o teria reformado, ampliado, atualizado, mas ainda o estaria usando até hoje! Eu adorava a peça! Havia dado um trabalhão fazer a emenda de cada quadradinho daqueles! Demorei meses a fio… Mas quando ficou pronto, eu vibrei!! Ficou exatamente como eu queria: todo colorido, cheio de fios e justinho sobre uma blusa branca que eu tinha. Coloquei-o com uma calça jeans e saí pela primeira vez para o sucesso inevitável da peça. Chamava mesmo a atenção. Acho que, bem no fundo, minha mãe tinha era ficado enciumada…
Então, pessoal, a dica que fica é saber distinguir o que vai pro lixo do que vai pra doação, pois é importante. Além disso, consultar o dono de cada item que está sendo selecionado, seja pra um ou pra outro destino, é mais relevante ainda, pois mesmo que uma peça não sirva mais em nós ou já estejamos numa faixa etária incompatível com aquilo, o valor sentimental só poderá ser desconsiderado em relação ao dono da coisa, quando não mais houver a presença física para reclamar, como o faço agora.
MoBa NePe – 25 set. 2022.
Lindo texto. Parabéns, MoBa!
Querido escritor Natalino,
por alguma razão, seu texto e o do meu ex-aluno Esteban, ficaram perdidos nas mensagens!
Somente hoje foi que os vi!
Peço-lhe desculpas por isso!!
Obrigada pela leitura e pelo carinho de dedicar seu precioso tempo para vir ler os meus escritos!
Que a nossa semana seja bastante produtiva!
Receba boas energias e o meu forte abraço!
Ahhhhh! Eu me lembrei da minha avó fazendo colchas de retalho…
E fiquei curiosa: o que é macela?
Parabéns pelo texto!!!
Querida Liliane,
que bom que lhe despertei boas lembranças!
E, quanto à planta, “marcela” ou “macela”, deixo-lhe uma sugestão para que assista: https://www.youtube.com/watch?v=zrtwVTiqKD4 e veja como é, de fato, importante a cultura popular.
Obrigada pelo carinho de sempre!
Beijos pra você e pra minha “sobrinha” Clara!
Minha querida Mônica,
O que você aponta é algo muito importante e mostra uma consciência necessária em tempos sombrios como os atuais. Também tenho a memória, desde muito pequena, de ajudar minha mãe a separar minhas roupas e brinquedos para doar a crianças menos favorecidas (quando pensamos no início da década de 90, eu, filha de uma professora da rede Estadual na zona rural, não possuía muito, mas ainda assim separava muitas coisas que poderiam ser aproveitadas por outras crianças mais pobres que eu).
Eu também passei por isso quando fiz a seleção dos meus pertences para organizar a minha mudança. Quando começava a arrumação, sempre levava 4 cestos para separar o que seria encaixotado, o que seria levado, o que seria doado e o que iria pro lixo. Confesso que foi um trabalho árduo, mas valeu a pena. O que não foi para doação direta a pessoas ou instituições, foi lavado, acomodado por tipo em sacos plásticos transparentes e colocado na calçada, longe da lixeira, em horários distintos dos que o caminhão do SLU costumava passar pela minha rua. Eu sempre ia conferir e, no máximo 1h depois, as coisas já haviam sido levadas.
Seu texto me encheu de esperança, é papel nosso ser pilar na construção de uma sociedade mais consciente. Quando eu ainda morava na casa da minha mãe, uma vez, alguém havia passado pela rua revirando os sacos de lixo em busca do que se pudesse aproveitar, e deixou um rastro de lixo espalhado pelo chão. Ouvi uma vizinha na rua, aos gritos de “Isso é um absurdo!”. A única coisa que eu podia pensar era: “Absurdo é, em um país como o Brasil, alguém ter que buscar sua sobrevivência em meio ao lixo misturado”. Enquanto não tivermos condições mínimas de dignidade para todos, com sistema de reciclagem e coleta de doações ponto a ponto estabelecido, com campanhas de conscientização, infelizmente só nos resta a empatia (e ela, por si só, já é muita coisa!).
Um beijo grande e cheio de saudade!
Querida Rafaela,
seu texto também me encheu de esperança! Aliás, consciência e atitude são qualidades que a caracterizam e bem, além de várias outras que demandariam um ano e muita digitação para deixar aqui relatadas. A genética e o bom exemplo são inegáveis! Obrigada pelo relato, por trazer a sua prática para exemplificar ser possível, com pequenas atitudes, ajudar o próximo. É claro que a conscientização de toda uma população passa pelo processo da educação.
Que possamos, como professoras, multiplicar nossos exemplos e “contaminar” com o bem!
Que tenhamos uma semana abençoada!
Saudades mil de você e de todos da família!
Beijos e muitas energias boas!
Prezada professora Mônica,
Realmente é triste ver nas lixeiras itens que ainda podem ser usados. A gente precisa se conscientizar mais e saber que o que já não é útil para um, pode ser para outro que precisa.
Em meu pais que “tudo o que já não se usa vai pra o lixo” é mais triste ainda, porque gera um desperdício de produtos, muito relevante, de itens que poderiam ser usados por muitas famílias.
É muito bom que tenha falado sobre o assunto:). Espero que sirva de incentivo para a gente “pensar em doação antes pôr no lixo”
Um abraço grande:)
Steban.
Querido Esteban,
por algum motivo, seu texto ficou perdido lá nas mensagens e somente hoje foi que percebi que havia ficado sem responder!
O seu e o do escritor Natalino! Puxa vida!
Peço-lhe desculpas por isso!
Obrigada pela interação, pelos comentários e por compartilhar a situação como é em seu país.
Torcendo para que melhore por lá e por aqui também!
Que muitas pessoas possam realmente se conscientizar, é o que também desejo!
Receba o meu forte abraço e os votos de uma excelente semana!
Amiga, sua doação ou lixo me fizeram lembrar de muitos anos atrás, quando fazia trabalho comunitário da SSVP, e me pediram para separar no bazar as roupas doadas, boas para doação, e as imprestáveis.
Fui começar pelos sapatos, que eram muiiiitos. Uma montanha para falar a verdade. Separei primeiro os que já tinham os pares juntinhos, depois fui para a difícil tarefa de achar os pares. Conseguimos. O interessante foi descobrir que, no final, 1/3 dos sapatos doados só tinha um pé.
Fiquei imaginando por que alguém guardaria e doaria só um pé.
Muito tempo depois, numa reportagem sobre doações para ocasiões de calamidade, a repórter chamou a atenção para o mesmo problema. Era uma quantidade muito grande de sapatos doados contendo um só pé.
Eu acredito que, quando queremos, tudo pode ser doação, mas nem tudo deve ser doado, pois é simplesmente lixo.
Quanto ao coletinho de crochê colorido, acho que conheci né?
Estou adorando suas histórias.
Beijos no coração.
Querida amiga Zila,
você me informando de coisas que eu nem sabia… Que você atuou na Sociedade São Vicente de Paulo, que encontrou doações de pessoas que imaginam que um pé de sapato possa ser útil para doar… A vida é repleta de histórias, não é mesmo?
Obrigada, igualmente, por compartilhar!
Também gosto muito de suas histórias!
Acredito que tenha conhecido o meu coletinho de quadrinhos de croché!! Liiiiinnnnndoooo!!!
Beijos no coração e que tenhamos um fim de semana abençoado!
Amiga, sua doação ou lixo me fez lembrar de muitos anos atrás, quando fazia trabalho comunitário do SSVP e me pediram para separar no bazar as roupas doadas boas para doação e as imprestáveis.
Fui começar pelos sapatos, que eram muiiiitos. Uma montanha para falar a verdade. Separei primeiros os que já tinham os pares juntinhos, depois fui para a difícil tarefa de achar os pares. Conseguimos. O interessante foi descobrir que no final um terço dos sapatos doados só tinham um pé.
Fiquei imaginando por que alguém guardaria e doaria só um pé.
Muito tempo depois, numa reportagem sobre doações para ocasiões de calamidade, a repórter chamou a atenção para o mesmo problema. Era uma quantidade muito grande de sapatos doados contendo um só pé.
Eu acredito que, quando queremos, tudo pode ser doação, mas nem tudo deve ser doado, por é simplesmente lixo.
Quanto ao coletinho de crochê colorido, acho que conheci né?
Estou adorando suas histórias.
Beijos no coração.
Mônica, querida!
Sempre me emociono com suas reflexões.
Agora estou aqui, relembrando a época das vacas magras em que minha mãe saía pela vizinhança recolhendo garrafas.
Não por necessidade vital, mas emocional. Ela sempre queria tirar um retrato ou comprar uma blusinha para mim e para a minha irmã.
Como o dinheiro só cobria as necessidades básicas, lá ia a minha mãe juntar garrafas rsrs.
Saudade dela… faz parte 🙂
Querida Lucimara,
bom saber que você se emociona ao ler as minhas histórias, as quais, de fato, são recheadas de minhas reflexões e, também, de minhas emoções, como em seu breve relato, percebi havê-las.
Lindo saber que sua mãe se preocupava em deixar às filhas (no caso, você e sua irmã) ainda mais lindas e, claro, perpetuar momentos inesquecíveis lá do passado, para que possam revivê-los no presente, quando ela não está mais fisicamente com vocês!
Obrigada por sua presença neste blog e por vir interagir comigo e com os demais leitores!
Abraço repleto de boas energias e que o nosso fim de semana seja bastante proveitoso!