Conversa dos outros
Demorei alguns anos, depois de já ser habilitada, para ter um carro. Meu primeiro carro foi um Celtinha azul royal, pouco tempo de uso nas mãos da primeira proprietária que, diga-se de passagem, cuidava muito bem dele. Dei sorte. Depois dele, meu falecido marido me incentivou a comprar um carro novo e eu, de fato, comprei. Mas não foi para falar de carro que vim prosear hoje; foi para falar de outro assunto e aproveitar para dizer que, apesar de ser habilitada e ter um veículo próprio, jamais deixei de andar em transporte público e, inclusive, caminhar até o centro de Belo Horizonte, sobretudo quando posso contar com a agradável companhia do meu irmão e da namorada dele.
Em meus deslocamentos em coletivos, inúmeras vezes já me peguei prestando atenção na conversa dos outros. Às vezes, uma discussão ao telefone. Outras, entre pessoas que estão assentadas no mesmo banco ou em bancos distintos, comigo atravessando a conversa e quase me coçando de vontade de dar um palpite.
O mais curioso é o quanto fico instigada a interagir, sobretudo quando os falantes descem antes de mim e eu os vejo sumindo das minhas vistas ainda conversando; dá uma vontade incrível de pedir que me mandem um zap contando pra mim como terminou a coisa toda. Se é casal discutindo, fico querendo dizer pra eles que se a situação ficou insustentável, melhor é cada um seguir pro seu lado e tentar ser feliz em outro espaço. Mas se tem coisa que tenho aprendido é a ficar calada. Até mesmo a fazer cara de paisagem ou, então, tirar um estratégico livro de dentro da mochila e insistentemente tentar lê-lo em meio à prosa alheia.
O engraçado é que eu percebi que não presto atenção às conversas alheias apenas nos coletivos, mas em qualquer lugar onde elas aconteçam. Por exemplo, conversa de secretária de consultório médico ou odontológico, depois que pega a carteirinha do convênio e diz para eu esperar ser chamada, quando ela faz as ligações particulares dela, seja do telefone do serviço, seja do celular. Como elas são pessoas com as quais eu me encontro com certa regularidade e sei o nome, quase que pergunto na próxima visita se o pai já melhorou e foi pra casa; se a faxineira realmente pediu conta; se ela conseguiu uma nova babá e por aí vai.
E a conversa de três adolescentes? Achando que é fácil entender e acompanhar mais de 50 “tipo assim…” em poucos minutos de jovens estudantes do ensino médio proseando em uma mesa de bandejão? É quando eu posso dizer que sou de uma geração muito diferente, com a certeza de não estar errando. Apesar de uma delas ter pedido educadamente para se assentar em minha companhia, depois que as 3 se reuniram, a prosa entre elas prosseguiu alheia à minha presença. Já me aconteceu em outras ocasiões de eu ser simplesmente ignorada como usuária já assentada à mesa quando um grupo tomou posse das outras cadeiras ali disponíveis, sem sequer se dirigir a mim. Lógico que, ao terminar minha refeição eu me voltei ao grupo e pedi licença para me levantar e sair dali. Neste último exemplo, além de a falação do jovem grupo estar me tirando do sério de tantos palavrões, mastigavam com a boca aberta e reclamavam da comida!! Várias coisas inadmissíveis na minha opinião, foram ditas por esse grupo que invadiu o meu espaço e o meu sossego.
Mas… Voltando ao trio de mocinhas que pediu licença para se assentar à mesa onde eu me encontrava, elas falavam de relacionamento. Isso mesmo. Não o próprio, mas o alheio. E eu, ali, comendo feliz a boa comida preparada pelo pessoal do bandejão, prestando atenção a mais uma conversa alheia. Elas me pareciam a reprodução de algumas novelas e suas intrigas entre pessoas que começam a descobrir o mundo e a perderem umas para as outras os pretensos ou futuros namorados (ou “namoridos”) que se tornam “ex” sem nem ao menos terem sido…
Ainda em relação à conversa dos outros, a que menos deve nos incomodar é a que mais mexe conosco. É aquela que fala algo de nós e por nossa causa, gerando em nós um desconforto com o qual ainda temos muito que aprender para sabermos lidar melhor com a situação, com o que falam de nós. Tem até um dito popular: “Falem mal, mas falem de mim!”. Será que é isso mesmo?
Estou me perguntando ciente de não ter a resposta. Quando falam sobre nós coisas que temos ciência de serem injustas, um despropósito ou algo verdadeiramente falso, ainda é um ponto de discórdia ou de desassossego. Não que tudo que nos chega aos ouvidos deva ser levado a sério, mas acontece que a velocidade de propagação das informações no mundo moderno tem-nos feito sempre estarmos a um passo atrás em relação ao que falam, repercute e ecoa em nós.
Por exemplo, quando insinuam que eu peguei algo alheio, isso me incomoda até hoje. Embora eu tenha sempre a consciência em paz, a imagem que a pessoa – que diz esse tipo de coisa – faz de mim, na verdade, mostra o caráter dela, já que está medindo as atitudes que ela julga que eu possa ter, a partir de um juízo de valores que é dela.
Eu me lembro muito bem do lápis de cor bastante usado e pequeno com que apareci em casa depois de minha aula no grupo escolar e a minha mãe me fez dizer de onde vinha aquele lápis e, apesar de eu haver explicado que uma de minhas coleguinhas havia me dado, minha mãe fez questão de ir comigo à escola no dia seguinte, conversar com a menininha e me fez devolver o lápis que eu havia ganhado de presente. Isso mesmo! Tive que devolver. Minha mãe não admitiu eu aparecer em casa com algo que não era meu. A minha sorte, depois de ter ficado muito triste por ter que devolver o lápis de cor, foi que a minha madrinha me presenteou com uma caixinha com 12 lápis de cor no meu aniversário, pouco tempo depois. Eu voltei a ficar feliz por poder colorir. Mas nunca me esqueci do episódio. Sei muito bem distinguir o que é meu daquilo que é dos outros.
É por isso também que eu penso que venha de onde vier a conversa dos outros, tenha que destino for, que não devemos nos importar tanto assim com ela. Mas que no caso de ser uma prosa que não nos envolva diretamente, que dá uma tremenda curiosidade para saber o final daquele trechinho do qual participamos indiretamente, lá isso dá!
MoBa NePe Zinid – 28ago2022
Lindo texto!
Oi Vital, que bom que você gostou! Espero que me ajude na divulgação! Sempre bom ter quem nos leia e nos dê o retorno, como você vem fazendo! Sou-lhe grata! Que tenhamos uma semana abençoada e com muita conversa (boa) dos outros! Abração, MoBa
Mônica, apóio a ideia de você posicionar, no hall, uma carteira com uma plaquinha: “conte-me uma história”. Aposto que nasceria um lindo livro de contos daí! Beijos!
Oi Rafaela, minha amiga! Você me fazendo rir sozinha aqui a essa hora da noite! Rs. Ainda bem que não gargalhei! Mas foi mais porque adorei a sua ideia! Rs.
Quem sabe, não é mesmo? Obrigada pelo carinho de sempre! Bjs e vamos, que vamos, MoBa
Mônica, enquanto lia, pensei: fácil ouvir questões alheias e difícil quando elas também falam sobre nós.
Poucas linhas abaixo, o seu incômodo veio ao encontro do meu rsrs.
As delícias e os desafios das histórias (nem sempre) alheias.
Beijos!
Oi Lucimara,
que bom que você tenha se reconhecido nos meus escritos!…
São mesmo deliciosas algumas histórias e, ao mesmo tempo, muitas delas são desafiadoras!…
Obrigada por dedicar parte de seu tempo para vir interagir aqui comigo!
Espero continuar dialogando bem assim com você!
Abraço repleto de boas energias, MoBa
Entendo você amiga, pois sou mestre em prestar atenção no ambiente em que estou com bastante curiosidade, não para julgar ou criticar, mas na maioria das vezes, para aprender.
Em viagens no transporte público então, escutamos causos maravilhosos e surpreendentes, momento em que nossa língua coça para falar. Mas a sabedoria nos cutuca e mostra que é melhor continuar só ouvindo mesmo.
Seus textos estão cada vez melhores e mais vivos em detalhes, o que me faz me imaginar na história.
Beijos no coração.
Querida amiga Zila,
obrigada pelas palavras elogiosas!
Sempre bom poder contar com você!
Ainda bem que não sou a única a prestar atenção nas conversas no transporte público! Rs.
Beijos no seu coração também!